sábado, 2 de abril de 2016

Vivência

Quando eu era criança, ali pelos cinco anos de idade, morava em Santos, bem perto do restaurante em que meu pai trabalhava, chamado Fifty-Fifty. (Meio a meio o quê, não tenho ideia...).
Meu pai era maître-D, e, apesar das pessoas imaginarem como é sofrido ser familiar de médico, por causa de plantões e etc, não sabem que é muito pior para garçon e similares. Eles dormem quando os outros estão acordados, e trabalham na hora em que, supostamente, a família está reunida para comer. Eu me lembro de uma única vez em que saímos para jantar juntos, na época éramos cinco, e fomos todos de calças jeans, rindo, celebrando.
Bom, tudo isso para dizer que estar com o meu pai era um evento muito raro, então ele tinha uma aura mágica. Era um homem fisicamente muito bonito, labioso, simpático, encantador, e ficava especialmente doce no ambiente de trabalho. Nasceu para servir, exímio ator, fazia o freguês se sentir especial. E eu era uma "freguesa", de fato, especial. Única filha, na época.
Então, nas raras vezes em que fui ao Fifty-Fifty, ele me levou a um ambiente com ar-condicionado (imagina a bênção que isso era, em Santos, nos anos 70), e me serviu uma torta de chocolate meio amargo, com recheio de damasco.
Não há nada no mundo com sabor parecido para mim. Misturar chocolate meio amargo com damasco me traz a memória afetiva de estar com ele, o geladinho na pele, o mundo fervendo lá fora, a voz, a atenção, me sentir cuidada, alguém me mostrando o que é bom e eu mereço.
Ao longo da vida, tenho consciência desse tipo de associações que faço, que me permitem viver mais intensamente e reviver, mais à frente, o que acontece de bom. Independente de vir a acontecer de novo, ou de algo ruim ter acontecido depois. A lembrança daquele momento, aquela sensação, aquele sentido despertado são meus e ninguém vai tirar, nunca. A não ser que eu venha a ter algum distúrbio neurológico, bate na madeira, nunca se sabe.
Exemplo mais recente: eu sei que se esculpir fosse um dom para mim, eu reproduziria um rosto de um homem. Tenho a memória tátil dos ossos todos, e da consistência da sua pele, dos tecidos que chegam até eles. Sei o comprimento dos seus cílios e o cheiro do seu queixo. (Sei, sei, isso não influenciaria na escultura).
Isso para mim é prova de um momento bem vivido.A impressão que me causa, o motivo inexplicável de eu já ter tocado tantos rostos, e nenhum ter marcado tanto. E não tem nada de amor, ou paixão, querer isso ou aquilo da pessoa. Simplesmente, por algum motivo, marcou. E não marcaram outros detalhes. Deles eu me lembro, mas com certeza vou esquecer logo, porque são pequenos. Ficou a memória tátil. Do rosto bonito. Uma surpresa boa. Um presente.
E a vida continua, e quando menos eu esperar, vai ter um gosto, um cheiro, uma música, um movimento ou sei lá o quê, novo ou conhecido e visto de outro ângulo, dentro de um contexto maior, bom, que vai fazer meu olho brilhar e me lembrar de como é gostoso estar viva.

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