quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Valquíria

Valquíria chegou correndo em casa, após 12 horas de plantão, e ficou em dúvida: o que fazer? Tomar banho? Comer? Se jogar no sofá e colocar os pés prá cima? A última opção seria a mais condizente, com certeza... Tinha cuidado de um paciente de 36 anos que infartara por uso de cocaína. Por um lado, se perguntou quão viciado ele seria, se tanto empenho em salvar sua vida não seria desperdiçado numa próxima epistaxis (hemorragia nasal) ou overdose. Por outro, sabia que não cabia a ela julgar, e não se conformaria em perder um paciente tão novo para um infarto! Deu certo. Estava vivo e estável, quando ela passou o plantão para o colega.
Decidiu dar comida para o gato. Entrou no banho. Enquanto lavava o cabelo, pensou no que vestir. Tinha combinado de ir a uma festa da família do namorado, e depois ele viria dormir no apartamento dela.
Não gostava da talvez futura sogra. No último almoço em que estiveram juntas, ela perguntou, bem alto, para todos ouvirem: "E aí, Valquíria, está com enxoval pronto?" Risos. "Não, minha senhora"- respondeu - "Estou com apartamento montado. Só falta homem que preste!" Ninguém riu. "Lá sou mulher de enxoval?" - pensou. Imaginou a mãe, feminista de carteirinha, revirando no túmulo com tal ideia.
Em outra festa, um colega do trabalho dele perguntou: "E aí, quando sai o casamento?" "Não coloca ideias na cabeça dela!" - foi a resposta. Risadas. Valquíria se ofendeu. Por que ela teria "ideias"? Quem vivia dizendo que não via a hora de se casar, para deixar de jantar sanduíches era ele! Como se a necessidade nutricional do ser humano mudasse ao mudar o estado civil... E se a intenção não era o casamento, prá que chamar de namoro, apresentar prá família, ficar fazendo planos para futuro, escolher nome de filhos? Inspecionou a perna. Os pelos não estavam longos o suficiente para ir à depilação, mas com certeza a impediriam de usar vestido. Suspirou, aborrecida. Queria usar vestido.
Colocou um roupão, comeu uma fruta para não perder o apetite, mas não ficar verde antes do jantar, se vestiu e estava se maquiando quando precebeu uma mancha de bolor no azulejo, dentro do box. Xingou mentalmente a faxineira. Estaria muito cansada para se importar, num dia normal, mas receberia o namorado em casa, que sacanagem! Parou tudo o que estava fazendo, pegou um papel toalha, um pouco de sapólio cremoso e... ficou paralisada!
Pensou em quantas vezes foi ao apartamento dele e econtrou louça de dois dias na pia. Quantas vezes teve que ir ao supermercado comprar produtos de limpeza para dar uma limpadinha básica lá, porque aparentemente ele se importava em se vestir bem, ter o celular mais moderno, mas não em morar numa pocilga. E em quantas vezes ele chegou tão bêbado de uma festa, que nem escovou o dente! Pegou o telefone.
- Alô. Pedro? Não vou. Estou muito cansada. E amanhã teremos uma longa conversa...

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