terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Doença

Quando dona Hermínia enviuvou, aos 72 anos, as quatro filhas decidiram não tirá-la da casa que havia construído e na qual morava havia 45 anos. Minha amiga Renata, a mais velha, mudou-se para lá, com o marido. Os filhos estavam na faculdade, visitavam pouco os pais devido a distância, e a adaptação foi fácil. A sogra e o genro se entendiam bem, e Renata, por ser dona-de-casa, administrava tudo para a mãe, desde pagar as contas até supermercado, refeições, ordens para a empregada, levá-la ao médico e o que mais surgisse. A senhora vivia contente, fazendo seus sapatinhos de tricô para a caridade, e se encontrava com amigas de vez em quando, para um jogo de buraco. Elogiava sempre a filha, e chamava-a de "meu tesouro".
Após três anos, porém, as coisas começaram a mudar. Aos poucos, Renata notou uma perda de memória na mãe. Conversou com as irmãs, e acharam que era da idade, não havia motivo para preocupação. Na verdade, era a esperança que elas tinham. Mas foi ficando cada vez mais frequente. Ela ía até a cozinha, Renata perguntava se ela precisava de ajuda, ela dizia que não se lembrava por que tinha ido até lá. Voltava para a sala, voltava para a cozinha, dizia que não lembrava oonde estavam os óculos. Renata os achava bem ao lado da poltrona. Depois, o novelo de lã cor-de-rosa. Depois, outro detalhe havia sido esquecido. Aos poucos, começou a deixar de tomar o remédio para pressão alta pela manhã, como sempre fez. Renata colocava numa caixinha com a indicação de segunda a sexta-feira, e ela sempre deu conta, sozinha. Mas começou a esquecer, e, se perguntassem, olhava com estranhamento para a pessoa, e depois dizia "não tenho certeza". Logo parou de escovar os dentes.
Além disso, começou a ficar apática, quieta num canto, conversar menos, reagir de maneira neutra mesmo às notícias mais alegres.
Renata levou-a ao geriatra, que fez todos os testes necessários para descartar outras doenças, e chegou ao diagnóstico: mal de Alzheimer.
Cada filha reagiu de um jeito. Renata primeiro entristeceu-se, depois teve medo do que estava por vir. A segunda, Mônica, tratou de ler o que pudesse na Internet a respeito, e reuniu as quatro para se organizarem. A terceira, Marta, disse que queria assegurar o conforto da mãe, que providenciaria uma cuidadora, quando houvesse a necessidade, e que organizaria os gastos, que elas dividiriam. A quarta, Alessandra, na eterna atitute de bebezinha, só chorava, e disse que concordava com tudo o que fosse decidido.
Eu e Renata já nos víamos com frequência, mas essa situação nos aproximou mais. Ela contava comigo para desabafar, às vezes num café, às vezes num telefonema, mesmo. Cortava o coração escutar a descrição do que estava acontecendo, e fiz algumas visitas a dona Hermínia, mesmo na época em que ela deixou de me reconhecer. Pelo jeito, todos que lhe deviam gratidão viviam borboleteando em volta dela, e enquanto ela pode perceber as presenças das pessoas queridas, curtiu os momentos com alegria. Mas não durou muito, infelizmente.
O que mais impressionou e entristeceu Renata, no início da doença, foi a mudança da expressão do olhar dela. "Eu acho que a alma da pessoa está nos olhos, mesmo. E a alma da minha mãe está abandonando o seu corpo. É como ver uma árvore sendo comida por cupins por dentro, e só ficando a casca, e a essência, a seiva desaparecendo, lá dentro, aos poucos".
E que árvore tinha sido aquela! Dona Hermínia tinha mudado para São Paulo assim que se casou, aos 22 anos, vindo do interior do estado, e deu abrigo para todos os seis irmãos e vários sobrinhos que vieram tentar a vida na capital. Teve um casamento feliz com um homem de gênio difícil, mas coração bom, e enterrou um filho, assassinado a tiros num latrocínio, com 40 anos de idade. E não se entregou. Viveu os lutos de maneira saudável, sem entrar em depressão, como uma bola bem cheia, que bate no chão e quica de volta. Então, ela foi frutífera, frondosa, vistosa, acolhedora, de aparência secular e infinita. Totalmente diferente do que se tornou, com a doença. O que fez mais difícil a situação para a família. Foi, para ela, perder a mãe, sem que ela realmente morresse.
No início, Renata se chocava com as coisas que a mãe falava, quando ficava agressiva. Tentava descobrir se tinha culpa, se merecia aquela explosão. Levava para o lado pessoal, porque ela sempre tinha sido tão coerente, e era a voz, o corpo e os gestos dela. Fui várias vezes nas consultas com as duas, na esperança de que o neurologista conseguisse cconvencê-la de que nada daquilo era pessoal. Não era uma punição, era a evolução da doença, e havia remédios e maneiras menos difíceis de lidar com ela, no dia-a-dia. Por exemplo: Renata e a família tentavam ao máximo manter uma rotina consistente, para não sobressaltá-la, principalmente no final do dia.
Foram particularmente difíceis três situações: Renata foi a primeira filha que dona Hermínia esqueceu. Dizia que ela já estava morta. Renata magoou-se com isso, como se fosse uma indicação de menos apreço. Logo ela, que mais fazia pela mãe, convivia no dia-a-dia. Também ficou chocada quando a mãe começou a exigir "voltar para casa", que aquela não era a dela. No dia em que a mãe disse que as pessoas responsáveis pela TV a cabo estavam mudando a programação para confundi-la, Renata teve uma crise de choro, na minha frente. Como se aquilo tivesse sido uma indicação mais palpável da doença, do que todos os outros sintomas.
Hoje em dia, quatro anos após o diagnóstico, "as abóboras já se acomodaram na carroça", diz ela com um sorriso triste. As quatro formaram um time unido e que funciona bem, junto com os maridos, filhos e cuidadoras. A dona Hermínia teve sorte. São elogiados pelos médicos.
Às vezes, Renata se deixa abater pela situação, e me conta, a sós, o que vai no seu íntimo. Recentemente, a mãe foi hospitalizada com uma infecção urinária, e ela disse que teve uma atitude muito agressiva com o pessoal do hospital. Reconhecia. Exigiu que atendessem logo, fez vários contatos com o médico, se empenhou demais na cura da mãe. E me disse que tem muito medo do dia da morte dela. Tem medo de que, além de sentir tristeza, também vai sentir alívio. Porque a carga vem sendo pesada demais, emocional, fisica e financeiramente. E aí, medo de sentir culpa por ter sentido alívio. Não se permite isso. Sugeri que espere para ver como será, que não tem como prever. Prometi estar com ela nessa hora e dei, sem pressionar, o cartão de uma ótima psicóloga, outra grande amiga minha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário