quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Escolha

Recostada num sofá confortável, numa sala de dimensões amplas, na casa de seus pais, Ana cochilava com languidez. Naquela fase entre estar acordada e adormecida, sentiu que abandonava seu corpo, num sonho estranho, vívido, do qual se lembraria para sempre.
Entrou em uma adega, onde encontrou sua irmã, Maria, próxima a uma mesa retangular comprida, com quatro taças de vinho de cristal cheias pela metade.
- Hora de escolher, Ana. - E fez um gesto sinuoso apontando as taças com a palma da mão esquerda.
Ana aproximou-se, deu-lhe um beijo nos lábios, como era costume, desde crianças, e sentou-se numa cadeira. Maria sentou-se em sua frente, do outro lado da mesa.
Ela tomou a primeira taça, e sorriu para a irmã, que sorriu de volta.
- Descreve. - pediu Maria.
Ana fez o ritual de degustação do vinho, e repetiu com cada taça, posteriormente. Inspecionou a coloração, depois contra a luz, inalou, fez movimentos circulares com a taça e cheirou novamente, experimentou e bebeu, por final. Procurou pelas palavras certas.
Respondeu, para o primeiro:
- Esse é bem límpido... Vermelho rubi... Tem um cheiro animal. - Parou para pensar, olhou de novo, bebeu mais um pouco. - Doce, fresco e delgado.
E, imediatamente, lhe veio à mente a imagem do cuidador de cavalos. E sua voz: "Eu te amo, Ana. Quero te fazer feliz." Olhou assustada para a irmã, que levantou as sombrancelhas, como se também pudesse ouvir.
- Este vinho é de uma safra comum, irmã. Na verdade, todas esses garrafas da parede atrás de mim são dele.
Ela viu a quantidade delas acomodadas lá, às centenas, e imediatamente a bebida perdeu o seu valor. Assumiu um gosto de vulgaridade, de lugar-comum. Teve curiosidade em provar o próximo, num tom de vermelho violáceo muito mais bonito.
Repetiu as manobras. Obedeceu Maria, novamente, após saborear por um momento:
- Aspecto brilhante, lembra substâncias queimadas para o olfato, com um toque de canela, encorpado, mas um pouco áspero.
De novo, um rosto invadiu seu pensamento, e a voz que vinha dele: "Por você, abandono a minha batina, minha querida..." Devolveu rapidamente a taça ao seu lugar. Um sentimento de medo e culpa chegou, de pronto.
- Não fica assim, Ana. São apenas opções. O futuro está em suas mãos.
Partiu para o terceiro. O coração já disparava um pouco. Estava claramente sendo testada, e não o contrário. Era um pouco assustador que a irmã parecesse saber o que passava no seu íntimo, com tanta clareza.
Teve bastante dificuldade em descrever, por falta de características fortes. Esse era bem menos marcante. Mas um vinho raro, disse Maria. Ana quis experimentar, independentemente disso. Por algum motivo, tinha chamado mais a sua atenção do que os outros, logo que entrou no jogo.
- Vermelho tijolo, opaco, frutado... Açucarado, leve... Um tanto insípido pro meu gosto. É o...
Maria fez que sim com a cabeça.
- Sim. É o filho do Conde, Percy. Você sabe que ele está cedendo à chantagem do pai, e pensando em desisitir de você, não é?
Ana olhou para baixo e conteve uma lágrima. Aquele era o vinho do qual queria se embriagar. Previsível, de baixo teor alcoólico, sem sobressaltos ou ressaca, com uma pequena possibilidade de tédio acompanhando. Mas fraco, para alguém que conhecesse vinhos, como ela. Infelizmente.
Antes que Ana partisse para a última taça, Maria trouxe a garrafa. Jurou que era a única daquele tipo. Preciosíssima. Tirou a rolha, e Ana poderia jurar que viu uma fumacinha sair dela, e formar uma pequena caveira no ar. Pensou que talvez já estivesse bêbada. Maria suspirou, com os olhos fechados, e encheu um pouco mais.
- Agora, essa. - Pediu, sem disfarçar a ansiedade.
- Hum... vermelho vivo, mas velado, turvo... cheiro de madeira e vegetal. Seco, áspero, denso... - Fechou os olhos - Embriagante, inevitável, irresistível... "Ana, você vai ser minha, custe o que custar!"
Ela saiu subitamente do enlevo em que estava.
- Henrique! - Gritou.
Maria sorriu lentamente, e seus olhos marejaram.
- Mas ele estava na sua cama até ontem, irmã. É o pai do seu filho! Não seria certo!
- Ele é o rei, irmã. E a quer. Segue o seu coração. Eu aprovo o que você quiser, desde que fiel à sua vontade e não às pressões políticas dos homens.
Uma rajada de vento entrou pela janela, batendo em seu rosto com violência, e ela acordou. O gosto de vinho ainda estava no fundo de sua garganta. A decisão estava tomada. Precisava fazer com que ele soubesse, agora.

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