quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

A Ex

Quando deixei de trabalhar no setor de emergência de um hospital pequeno, no Alto da Lapa, às sextas à noite, minha amiga Fernanda assumiu o meu lugar. Era um plantão tranquilo, com casos simples, boa retaguarda, e os donos pagavam em dia, coisa que, para a maioria dos médicos, é raridade.
Depois de uns seis meses, apareceu, uma noite, um moço que a impressionou pela beleza física. Estava com amigdalite, nada de mais, segundo ela, foi prescrito o antibiótico. No dia seguinte, ela me encontrou e comentou sobre ele. Depois de uma semana, ele passou de novo pelo plantão, para "ver se tinha sarado", e ficou em consulta uns quarenta minutos, jogando conversa fora. Quando ela me contou, comecei a brincar, que ela tinha arrumado um admirador. Ela ficou sem graça, riu, disse que desconfiava que sim, gostava da ideia, mas talvez não fosse nada disso. Na outra sexta-feira, lá me aparece ele, dizendo que estava com... afta! Aí, nós fechamos o diagnóstico. Quem vai a um plantão médico por causa de afta?! Trocaram os números de telefone, e começaram a se falar todos os dias. Ele era engenheiro agrônomo, divorciado havia dezoito meses, sem filhos. Ela era um doce de pessoa, tímida, discreta, "moça prá casar".
O que não esperávamos era que, na outra semana, ela pegasse a ficha de uma paciente e reconhecesse o sobrenome dele. Era muito diferente, começava com CJZN, ela não sabia pronunciar, por isso tinha notado. E também pelo interesse, óbvio.
A mulher era uma morena muito bonita, alta, cheia de joias, impressionava e intimidava pelos atributos físicos. Fernanda se perguntou se talvez ela seria uma parente. Não parecia irmã dele, porque ele é um alemãozão, aloirado de olhos verdes. Mas logo ela não teve dúvida de que era a ex-mulher dele. Ela queixou-se de "batedeira". Fernanda a consultou normalmente, examinou, pediu um eletrocardiograma, que estava normal, e tentou ser o mais profissional possível. Mas ficou o tempo todo se perguntando se não era coincidência demais aquela situação. Se ela sabia de alguma coisa, e qual seria o intuito disso. Eles eram discretos, nem tinham saído, ainda. Será que a mulher o teria seguido, nas vezes em que ele esteve lá? Se sentiu meio paranóica, mas as coisas ficaram mais complicadas. No final do atendimento, a minha amiga a encaminhou para o ambulatório de cardiologia, para investigar melhor, e ela caiu aos prantos. Disse que tinha certeza que estava sentindo aquilo pelo nervoso de estar esperando pelo resultado de um exame de HIV. Que tinha se separado do marido havia tempo, mas continuava dormindo com ele, e sabia que era um galinha, estava com muito receio de que viesse positivo.
Fernanda me procurou na manhã seguinte, desnorteada. Das duas uma: ou a mulher estava falando a verdade, e ela poderia estar entrando numa grande enrascada, ou ela estava mentindo, e ela estaria entrando numa grande enrascada, do mesmo jeito!
Eu não soube ao certo o que dizer. Por um lado, ela mal conhecia o moço, estava interessada, mas não apaixonada, seria fácil desistir naquele ponto. Por outro, se a mulher estivesse manipulando a situação, seria muito injusto ela desistir, e a moça se dar bem. Mas ambas não conseguíamos acreditar que alguém faria uma maldade tão grande, inventar essa história sórdida, para sacanear o ex-marido. Difícil.
A pulga ficou atrás da orelha, e Fernanda desconversou, evitou o contato com Tiago (esse é o nome dele), deletou seus contatos, e tentou esquecê-lo. Mas, depois de dois meses, não resistiu. Encontrou-se com ele, colocou as cartas na mesa, a história toda, e escutou o lado dele. A ex-mulher era realmente obcecada, fazia questão de manter o sobrenome dele, apesar de tanto tempo passado, e já tinha inventado outras histórias. Por exemplo, assim que se divorciaram, disse que estava grávida. Na hora em que ele pediu o exame comprovando, deu entrada num hospital, dizendo que estava abortando. No final, era mentira, ela teve que confessar.
Novamente, Fernanda veio até mim, para ponderarmos a situação. Sentia-se muito atraída por ele, era um cara bacana, ela já estava com certa idade, querendo casar e engravidar logo, tinha muita dificuldade em gostar de alguém. Mas a bagagem que ele trazia para o relacionamento era pesadíssima. O que fazer?
Fiquei numa situação difícil. Quis dizer para ela "corra para as montanhas e não olhe para trás", mas e se ele fosse o grande amor da vida dela? (Sim, sou romântica neste ponto). Tentei lembrá-la das aulas de psiquiatria, de um distúrbio de personalidade chamado borderline, que aparentemente a tal tinha. Como ela trabalhava, tinha amigos, se dava bem com a família (pelo que Tiago contava), não achava que precisava de ajuda. Atribuía seu comportamento bizarro à paixão, e não se libertava do passado.
Fernanda pensou bem, seguiu seu coração (ou seja, "não pensou demais da conta", como ela diria), e vai se casar daqui a um mês, após dois anos de namoro com Tiago. Eles definitvamente se amam, combinam muito, não imaginam o futuro um sem o outro e não aguentam mais namorar e dar tchau quando o fim-de-semana termina. Tudo bonitinho. Ou quase tudo. Vão morar em Ribeirão Preto, a 290 quilômetros de São Paulo, graças às aprontadas da ex. Ele conseguiu mudar de emprego. Neste período, Fernanda teve que trocar de celular cinco vezes, para parar de receber mensagens e ameaças, e procurou a delegacia uma vez para prestar queixa contra "a doida" - como a chamamos, por maldade, mesmo. Ela causou um acidente automobilístico uma vez, e ligou do hospital para o Tiago, para que ele fosse visitá-la. Fora as várias "tentativas de suicídio", que nunca vingaram, porque ela sempre dava um jeito de alguém descobrir antes que ela levasse a cabo os planos. Fernanda tenta se manter neutra, deixá-lo tomar as decisões a respeito do assunto, e ambos fazem terapia, para segurar a barra. Rezamos para que um dia "a doida" perceba que também precisa de ajuda profissional. Ou se apaixone por outro, para ser problema de outras pessoas. Mas o ideal é o primeiro cenário, claro.
"Graças a Deus, eles não tiveram filhos" - é a frase que a minha amiga mais repete.
"Boa sorte, Fernandinha" - é a resposta que eu mais dou. Porque ela, com certeza, vai precisar!

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