terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Sofrimento

Estou envolvida com a Medicina há vinte e oito anos, desde que entrei na faculdade, aos dezesseis. Como aluna, interna, médica, paciente, acompanhante de paciente, estagiária, pesquisadora, técnica de métodos diagnósticos, observadora ou qualquer outra função, nunca consegui ficar mais de duas semanas sem pisar num hospital. Assim, vi muitas histórias de superação do sofrimento, como não podia deixar de ser, e muitos tipos de reação a ele.
Mas foi por causa de um morcego que aprendi, uma vez, um modo lindo de fazer as pazes com o mesmo.
Tem gente que extrapola as cinco fases fundamentais de luto de Kübler-Rose para qualquer sofrimento (ou mudança) inevitável, o que faz sentido, para mim. São elas: negação, raiva, negociação, depressão, aceitação. Não necessariamente nesta ordem, com duração variável, às vezes voltando para uma que já passou, e, geralmente com a aceitação no final (o que é desejável, saudável). É nesta que as pessoas administram o sentimento de maneira a sofrer menos, por meios diferentes. Alguns recorrem ao estilo Pollyanna ("tudo tem um lado bom, o jogo do contente"), à religião (karma, reencarnação, vontade de Deus, como exemplos, para haver um senso de justiça/explicação), aceitam por cansaço mesmo (já que não tem outra opção, e o tempo ameniza), e outras.
Voltemos ao morcego. Uma noite, há quatro anos, um entrou no meu apartamento. Me acordou, pousando na minha coxa (e o desgraçado nem tinha pago um jantar, e nem mandou flores no dia seguinte!). A minha filha estava do meu lado, na cama, conclusão: vacina e soro anti-rábico para as duas!
Eu estava no Posto de Saúde para tomar o tal soro. Foi administrado por uma enfermeira, com a qual eu já tinha tido contato num momento muito difícil emocionalmente, antes. Não diria que éramos amigas, mas havia uma proximidade entre a gente, por essa razão. Para esse soro, ela pegou um acesso venoso (para medicação, caso eu apresentasse alergia ou choque anafilático), colocou um pouco dele no meu antebraço, para ver se havia reação local, e depois dividiu o resto da dose entre as duas coxas. Talvez por fazer musculação na época, o líquido entrou rasgando, doeu demais, mesmo, e as lágrimas começaram a rolar. Percebi que ela foi pega de surpresa. Talvez me visse como mais forte, pelo meu comportamento prévio. Segurou a minha mão e me perguntou o que estava acontecendo. Expliquei que eu estava chorando em imaginar que a minha filha, com sete anos na época, tomaria quatro picadas e sentiria aquela dor, e isso estava cortando o meu coração. Acho que aflorou nela a empatia das mães. Ela começou a chorar, também.
E me contou a história do filho, que teve um grave e raro problema ortopédico, aos dezessete anos. Gostei, me distraiu da dor, e me deu uma lição de vida. Falou das várias cirurgias a que ele foi submetido, a insegurança quanto aos resultados, sessões dolorosas de fisoterapia, o custo, e quão ruim foi tudo ter acontecido naquela idade, com Vestibular acontecendo, perspectiva de entrar numa faculdade, e tudo o mais. Como foi difícil para ela ver o filho sofrer, e todas as fases pelas quais passou (bem parecidas com as de luto, mesmo), como mãe. Mas que por muito tempo se fixou na pergunta "por que eu?". Disse que percebeu que muito do sofrimento foi gerado por essa dúvida. Até um dado momento, em que olhou em volta, naquele ambiente nosocomial, com tanta gente passando por tanta coisa diferente, e teve uma mudança radical da pergunta: "e por que não eu?". Começou a se perguntar se, considerando-se que o sofrimento é parte da vida de todo o mundo, por que ela se sentia melhor do que os outros ali, por que ela achava que poderia acontecer com qualquer um, e com ela não. Me surpreendi. Eu, pessoalmente, nunca havia encarado dessa maneira. Eu também me colocava como vítima, na maioria das vezes. E achei muito válido, uma forma de aceitação muito bela. Se sentir parte da humanidade, com suas mazelas, dividir o preço de estar viva com outros seres humanos, que também experienciam coisas que não querem.
Mas, como o meu estilo é Pollyanna, mesmo: prá mim, esse foi o aspecto bom de ter entrado um morcego na minha casa. Tive a oportunidade de ouvir esse ponto de vista diferente, desse show de mulher.
Ah! Nem doeu tanto assim o soro, na minha filha. Ela disse que foi um três, numa escala de um a dez, de dor.

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