sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Vovó

Eu não sei em que ponto da vida a Dona Filomena tinha decidido que já estava na idade de ser quem era, e aceita como tal. Ou se sempre tinha sido assim, meio sem noção. Porque eu a conheci na flor de seus 80 anos de idade, e ela não poderia ser mais indiferente à opinião de quem a escutava. E falava o que bem queria.
Conversei várias vezes com ela, aguardando o meu pseudonamoradinho se arrumar no final da tarde, para sair tomar um sorvete, ou situação parecida, e ao telefone. Ela me olhava desconfiada, nunca teve muita certeza do que acontecia entre nós, "meninos modernos", e vivia me aconselhando a não assumir compromisso muito jovem. "Veja bem, querida, como namorar é perda de tempo: Ana Rosa (a filha dela) namorou, namorou, namorou, e acabou casando com o último namorado que teve!" Ao que eu sorria, me perguntando se ela realmente não percebia o óbvio da afirmação.
Às vezes, entrávamos sozinhos, sem o seu conhecimento, no apartamento. Ele tinha feito uma cópia da chave às escondidas, porque ela tinha medo que um bandido o abordasse ao tentar entrar, como se o risco não fosse maior de acontecer com ela. Não prá fazer nenhuma sacanagem, pelo contrário. Pegávamos todas as latas de leite condensado, expiradas havia pelo menos quatro anos, em média, e trocávamos por latas novas, antes que ela percebesse. Uma vez, abrimos uma, e estava marrom escura, como se tivesse sido cozida em panela de pressão. Também trocávamos todas as outras latas, sacos de feijão, arroz, macarrão, o que achássemos vencido. Tínhamos o cuidado de ser a mesma marca, e comprar um produto que não tivesse validade muito prá frente, para não dar bandeira. Não podíamos arranhar o seu orgulho, de saber cuidar de si, sozinha, naquela idade. Mas, se ela tinha o produto, não achava necessidade alguma comprar outro igual no supermercado.
Ele quase não reclamava dela, a não ser pelo fato de usar sempre a mesma pasta de dente para dentes sensíveis, de gosto insuportável, salgada, e ficar com ele enquanto escovava os dentes, como se ele tivesse cinco anos de idade, para verificar a limpeza, depois. Desconfio que ele teve sorte em ser homem, porque ela não cerceou sua liberdade, como tinha feito com a pobre Ana Rosa e a Beatriz.
Uma vez, passei pela casa dela para sair com ele, e ela me olhou pela janela, saindo do carro, (talvez para ver se nos cumprimentávamos com um selinho? - sem chances, ele detestava demonstrações de afeto em público, apesar de todos os nossos amigos saberem que éramos um casal). No próximo telefonema: "Minha querida, aonde vocês foram ontem?" "Num barzinho, dona Filomena.""E por que você estava vestida daquele jeito?""Como assim? Saí direto da faculdade..." "Sem saia! Onde já se viu sair sem saia? Façamos o seguinte: deixa uma aqui em casa, que eu não quero que ninguém diga que a namoradinha do meu neto é brega!" Suspirei. Oitenta anos, né?
Em uma fase que andávamos brigados, perguntei a ela onde ele estava, ao telefone. Eu sabia que tinha viajado, só não sabia para onde. "Ele foi pro litoral, menina." "Litoral norte ou litoral sul?" Eu pude ouvir a impaciência dela, do outro lado: "litoral, menina, fica pro leste!"
Numa das nossas melhores fases, ele deu uma festa surpresa prá mim, na casa dela. Surpresa maior foi ela ter aceito aquele grupo de adolescentes bagunçando tudo, e inclusive aceitou que lavassem a louça para ela depois, coisa que nunca permitia, porque achava que só ela lavava facas sem cortar a esponja toda. Na hora do bolo, olhei deconfiada para as velinhas, olhei para ele, levantei as sombrancelhas, e ele fez que sim com a cabeça. Ela pareceu ter percebido: "olha, menina, as velinhas que eu guardo da época que os meus filhos eram crianças! Viu só? Quem guarda tem!" Fiz questão de escolher direitinho o meu pedaço de bolo, bem longe do centro do mesmo...
Mas a melhor foi quando o meu amorzinho foi para um Intercâmbio nos Estados Unidos. Liguei, toda chorosa para ela, que parecia estar tirando de letra a situação. Talvez, no fundo, até estivesse aliviada com a nossa separação. Nunca tinha engolido o fato de eu ser "do grupo de teatro", ao que torcia o nariz, como se isso manchasse a minha idoneidade, ou algo parecido. Não era casta suficiente para o neto dela, talvez? "Dona Filomena, a senhora já tem o endereço dele lá? Quero escrever uma carta" (Na época, não havia Internet). "Ai, não... mais uma?" Me ofendi. Como assim? Tinha muitas outras garotas pedindo o mesmo para ela? "Deixa prá lá, então", falei aborrecida e sem disfarçar, "não gosto de ser mais uma!""Ótimo!"- ela nem piscou - "agora você é menos uma!"

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